…ventre…
No início, era a neve
sem verbo ou cidade
a mais perfeita aquarela
O mais completo vão
A tinta seria apenas mais um pronome da arte
A poesia não seria nada além de belas e silenciosas palavras harmônicas
O mundo continuaria assim
Cheio de limites covardes
De inimigos invisíveis
De reticências e mais reticências
Mais uma vez, o fim…um inalterável ciclo sem fim
Mas, alguém, vestido de tempo
Armado de sonhos
Alguém que conhece todos os encantos do mundo
Não quis assim, desse jeito, alienado, como sempre
Alugou um quarto no sétimo céu
Pediu que não fosse incomodado
Amou daquela vez como quem nunca mais amaria outra pessoa na vida
Edificou silêncios, misturou a sensibilidade ao ódio da normalidade
Reciclou as mais belas palavras e entrou em transe profundo
Naquela quarta-feira…
Ouviu-se um choro
inquieto…
…era o choro do artista
preparou o sol para o dia
um café para a noite
feito rei e escravo
de seu próprio brilho
eterno…
como os sonhos que a gente tem quando criança
e que agora estão perdidos em algum lugar…
…arte…
Retalhos de uma poética
moldada passo a passo
nos passos do poeta do pó e do barro
essência…suor…
a beleza e o desprezo
navegam calmamente na superfície do afresco
no coração do velhinho simpático, nas veias da criança sem medo
sempre havia uma maravilha destinada aos dotados de extrema sensibilidade
graça somente alcançada pelos que conseguiam tocar o espaço invisível
que existe entre nós e o avesso de tudo que sempre fomos
e mais uma vez, chamariam aquilo de loucura
talvez eu, vizinho de um gênio incompreendido
que eu sequer visitei
e ainda tinha a honra de ser dele o amor de meu cãozinho
sempre doce com a presença daquele que um dia
havia sido bem cuidado por aquele que se vestiu de tempo
só pra que o tempo ficasse mais bonito
…o chão…
restos do silêncio da cidade
sangue…inconsciência
o corpo, nu em pêlo, reage
a minerva dos próprios dias
o museu está em obras la no céu
e a sua imortalidade mais que findada aqui na terra
a voz não mais fraca, as mãos não mais vivas
os pincéis, os rabiscos, a mais perfeita obra-prima
Obra mãe…
Obra da dor e do parto
…o parto…
como o vento faz com os pássaros
…desedifico-me…
Carlos-me.
* Poesia publicada no Jornal O Piagui em memória do artista plástico Carlos Guido.