Esperança do mundo

A esperança do mundo
é um velho retrato na cabeceira da cama
preto, branco, mal cuidado
e cheio de lembranças que vão muito além do limite da moldura

A esperança do mundo
é um coração desenhado na árvore
com faca cega por alguém mais cego ainda
na cegueira que é estar além das próprias vontades

A esperança do mundo
é um velhinho que ainda vê no café da manhã
o alimento necessário pras coisas do dia
e tenta se manter afastado de todos os empoeirados exames de saúde em sua gaveta

A esperança do mundo
é um jovem que renasce a cada manhã
com apenas um sentimento na cabeça
mudar o mundo a sua volta com rabiscos de caneta

A esperança do mundo
é um menino que ri de tudo
apesar do câncer em seu corpo
apesar das chamas corroendo cada folha de seu calendário

A esperança do mundo
é a tv desligada
o dicionário queimado
o relógio perdido
o soldado que renuncia ao chamado pra guerra

A esperança do mundo
é o poeta que sonha com novos gestos
e que sufoca o coração para dar aos outros
a poesia que tanto os conforta o peito

esperanca

A antisapiência

Se isto é certo ou errado
com você, eu prefiro ficar na dúvida
e me artirar num erro apaixonado
sem medir valor nem senso
Que tuas mãos me toquem
um seio depois o outro
pra que a gente se torne
delírio sem nome
corpo sem forma
olhos sem ponto de fuga
e um sentimento inatingível

corpos

A primeira nuvem

Tristes são os segredos no fundo do mar
que procuram a liberdade no desencanto
e deixariam esvair toda perfeição de si
só pra ser vida em todas as coisas que cantam
Eu quero ser alma ou ao menos lembrança de alma
em toda pedra, em toda perca, em todo riso
Quero ser caminho e passo sem rumo
Um atalho pra se chegar a tudo
mas, tristes são os segredos no fundo de nós
que brincam de ter vida no descuido

alma

Reinvenção

Reinventar-se é fundamental
Em cada gesto, em cada verso, em cada chão
Em cada passo em falso que a gente dá e nem percebe
Na palavra de carinho que a gente diz pra quem nem conhece
No abraço apertado que se dá na pessoa mais querida desse mundo
No mundo que a gente inventa com poucos rabiscos de caneta
Na caneta do tempo, na borracha inevitável do que jamais se apaga
Vivemos a eterna fome de sermos tantas coisas em uma só
Recriar-se em tudo, reler-se no ilegível
Absorver novos sons, novas vozes, novas palavras
Aprimorar a resposta nunca dita pra uma pergunta antiga
Perguntar-se sobre o café de amanhã bem cedo
Pra no fim das contas descobrir
Que o primeiro alimento do dia é sempre você mesmo
Rever-se nas fotos da infância, reciclar-se em sonhos mais ousados
Repor a conversa com sua própria mente
O que fará daqui pra frente e o que deixou pra trás que tanto te machuca
A vida, afinal, ainda não acabou
A vida só cessa quando o coração da gente sopra-se pra longe
E o céu se abre dentro do quarto
E o palhaço retira a maquiagem revelando o que nele existe de mais sofrível
E nós somos todos palhaços maquiados
para o confronto diário do nosso circo invisível

imagem

Só mais um super-herói sem rumo

Ei, Senhor Arquiteto de Tudo
Permita que eu viva sem fronteiras
Que eu tenha barras e não barreiras
Que eu esqueça que um dia eu tive medo de vencer
Permita que eu me apaixone por todas as coisas
E que eu não caia nos braços de uma grande paixão
Pois eu, egoísta, não saberei me doar a um ser só
Que eu busque também a minha eterna imperfeição
Nesses tristes tempos de excelência
Tempos em que a noite parece ser igual ao dia
E os sorrisos meros truques de magia
Permita que eu ande distraído e que também perca a noção
Permita que eu também tropece e que isso evidencie a minha falta de razão
Que eu também seja incoerente em minhas decisões
Que eu seja forma, cor, substância e interjeição
Eu mereço e preciso errar
Essa, afinal, é a essência que a mim foi dada
E da minha essência nunca irei me separar
O erro sempre estará presente em minha louca estrada
E o tempo que levarei pra me acostumar
Com a idéia de um dia inexistir
É um tempo alheio a minha vontade de sonhar e de seguir
Sei que um dia, assim, ao acordar
A manhã me apontará para um outro amanhecer
E eu partirei pra uma viagem sem volta
Isso me revolta e me faz viver

oracao1

Obra Mãe

…ventre…
 
No início, era a neve
sem verbo ou cidade
a mais perfeita aquarela

O mais completo vão

 

A tinta seria apenas mais um pronome da arte

A poesia não seria nada além de belas e silenciosas palavras harmônicas

 

O mundo continuaria assim

Cheio de limites covardes

De inimigos invisíveis

De reticências e mais reticências

 

Mais uma vez, o fim…um inalterável ciclo sem fim

 

Mas, alguém, vestido de tempo

Armado de sonhos

Alguém que conhece todos os encantos do mundo

Não quis assim, desse jeito, alienado, como sempre

 

Alugou um quarto no sétimo céu

Pediu que não fosse incomodado

Amou daquela vez como quem nunca mais amaria outra pessoa na vida

Edificou silêncios, misturou a sensibilidade ao ódio da normalidade

Reciclou as mais belas palavras e entrou em transe profundo

Naquela quarta-feira…

 

Ouviu-se um choro
inquieto…
    
…era o choro do artista
    
preparou o sol para o dia
um café para a noite
feito rei e escravo
de seu próprio brilho
    
eterno…
como os sonhos que a gente tem quando criança
e que agora estão perdidos em algum lugar…
    
…arte…
    
Retalhos de uma poética
moldada passo a passo

nos passos do poeta do pó e do barro        

 

 

essência…suor…
a beleza e o desprezo
navegam calmamente na superfície do afresco

 

no coração do velhinho simpático, nas veias da criança sem medo

sempre havia uma maravilha destinada aos dotados de extrema sensibilidade

graça somente alcançada pelos que conseguiam tocar o espaço invisível

que existe entre nós e o avesso de tudo que sempre fomos

 

e mais uma vez, chamariam aquilo de loucura

 

talvez eu, vizinho de um gênio incompreendido

que eu sequer visitei

e ainda tinha a honra de ser dele o amor de meu cãozinho

sempre doce com a presença daquele que um dia

havia sido bem cuidado por aquele que se vestiu de tempo

só pra que o tempo ficasse mais bonito

 

…o chão…
     
restos do silêncio da cidade
sangue…inconsciência

o corpo, nu em pêlo, reage

a minerva dos próprios dias

 

o museu está em obras la no céu

e a sua imortalidade mais que findada aqui na terra


a voz não mais fraca, as mãos não mais vivas

os pincéis, os rabiscos, a mais perfeita obra-prima

 

Obra mãe…
    
Obra da dor e do parto
    
…o parto…
    
como o vento faz com os pássaros
    

…desedifico-me…

           

Carlos-me.

 

 

 carlos_guido

 

 

* Poesia publicada no Jornal O Piagui em memória do artista plástico Carlos Guido.

 

O Peso da Palavra

Na verdade, não sei
Nem Sartre, nem Quintana, nem minha prima de cinco anos de idade
que hoje de manhã escreveu seu nome pela primeira vez corretamente
Nem o velho poeta na mesa de um bar
nem o dono do mesmo que sofre
por só saber lidar com números, vozes bêbadas
e com os tic-tacs do relógio da farmácia ao lado
Até por que, ninguém
nenhum ser que sobreviva a sobrevida humana
tem a precisão exata ou mesmo cálculo perfeito
Se é mais pesada que uma luva
Se é mais leve que um viaduto
Se é reciclável como os nossos defeitos
Se é plástica como o nosso sorriso
exata como o fogo que nos veste por dentro
Não, não se sabe ao certo
Não é como medir a superfície de um planeta ou a profundidade de um rio
Não é como diferenciar um brigadeiro de um pedaço de madeira
Nem como dobrar a direita na próxima avenida
a procura do caminho mais curto até o veneno de mais um dia de trabalho
Seria quase uma tentativa divina definir a longevidade
dessa necessária, porém, apática e doentia busca
como o Cisne que cisma em ser Dragão do próprio encanto
e por total desencanto, se esvai da beleza, distante, sereno e vazio
Mas, eu sei, meus dedos doem ao tocar as letras
Eu sei que meus dedos, eles sangram ao tocar as letras
Eu sei que meus dedos se acovardam ao tocar as letras
Sei que (o que mesmo que sei?)
Ah!
Eu sei que meus dedos sentem-se insuportáveis sobre o papel
ao tentar levantar cada uma dessas letras com um pouco de cada sentimento meu
com um pouco da minha essência momentânea, mesmo sabendo que
entre concepção e metamorfose
eu prefiro ser as duas, prefiro me reescrever a cada fio de segundo como um parto
metamorfoseando-me no seguinte, como um degrau

Quais os sintomas da palavra febre?
Quais os tormentos da palavra angústia?
Quais os segredos da palavra mistério?
Quais as feridas da palavra amor?
E saudade?
Será que a palavra saudade
sente falta da palavra anterior
ou se mantém atenta
as sobras ilegíveis da palavra de quem
comprou uma borracha e tentou descobrir o peso da palavra rancor?

De fato, a dúvida permanece sóbria em cada coração
A dúvida remaneja a certeza de volta ao seu lugar de origem: a contestação
É de lá que surgem as teorias, as definições 2.0, os ditados populares
os dizeres dos antigos, as novas regras da gramática
as novas maneiras de se cumprimentar na rua e todas as guerras intelectuais
que se possa imaginar
Somos a explosão de toda sobra e ausência de silêncio

É preciso mais de sete sentidos, aliás, é preciso ter milhões de sentidos
para começarmos a compreender o porquê que cada palavra carrega tanto peso
Será delírio? Será filantropia?
Será um mundo mais bonito ou será que já somos o mais perfeito une versos? 
E onde estará escondido o peso
do verbo, do pronome, da consoante, do hiato, do palavrão?
Onde estará escondido todo caminho e todavia, por onde passo?
Recordo-me da cicatriz que teima em costurar-se a cada ferida aberta na palavra sonho
(Existe alguma regra gramatical para descrever o meu?)
O verso é livre e não tem perdão

A palavra pesa o que minha alma não consegue suportar

palavra

Blog do Escritor e Poeta Ithalo Furtado